Nietzsche foi um autor bem peculiar, para não dizer extravagante. Se por um lado seu talento literário extraordinário e estilo singular lhe permitiram criar frases bombásticas mas com sentido filosófico autêntico, por outro, a glamourização da assistematicidade e o desprezo pelo rigor lógico que marcam a maioria dos filósofos, lhe rendeu um status ambíguo na História da Filosofia. Inicialmente considerado não mais que um poeta, ou literato, que se ocupava de temas filosóficos, foi elevado subitamente a pensador decisivo para o Ocidente por Heidegger, segundo o famoso mito do esquecimento do Ser por obra da Metafísica. Daí a tornar-se profeta oficial de nossa “época”, graças a alguns de seus célebres discípulos franceses, não demorou muito. Nietzsche já é mais popular que os Beatles, efeito de tanta propaganda ao longo do último século.

Sua obra é de ficção, talvez mesmo com o ideal assumido de tornar a ficção uma perspectiva tão ou mais relevante que aquelas que se orientam por lógica e empiria. Seus pré-socráticos, seu Sócrates, seu Jesus histórico, seu apóstolo Paulo, seu Descartes, seu Kant, seu Hegel, dos mais antigos aos modernos que o antecedem, são personagens puramente imaginados por Nietzsche, como contexto psicológico das ideias e valores que eles nos legaram. A si mesmo concebia como protagonista naquela trama civilizacional de tonalidade épica, auto-imagem que chega a se exibir como ficção propriamente dita no Zaratustra. Tal heroísmo auto-atribuído é o principal fator de vulgarização que sua “marca” sofreu, mas infelizmente é também o que atrai muitos dos acadêmicos que se envolvem no estudo e divulgação de seus textos.

Para o leitor leigo, nada disso importa, na medida em que não diminui o valor literário de um autor. Mas quando não se está alinhado à filosofia do próprio Nietzsche ou de alguns de seus discípulos, esta abordagem ficcional não contribui em nada para os debates sobre história da filosofia, metafísica ou ciência, nem para a interpretação do pensamento dos autores da tradição por ele atacados. Em casos assim, não se trata simplesmente de pedantismo que rejeita a forma literária adotada pelo autor, mas de debilidade do conteúdo mesmo de suas disparatadas hipóteses.

Apesar de tantas deficiências no conjunto, a obra de Nietzsche também possui pontos fortes em alguns de seus insights indiscutivelmente brilhantes, assim como certos tópicos que manejava como autoridade até. Academicamente, filólogo admirado e destacado, embora tenha frustrado expectativas de colegas da mesma ciência em sua época pelo “excesso de criatividade” em trabalhos como “o nascimento da tragédia”. Por capacidade inata complementada através de obstinado treinamento, foi também extraordinário psicólogo, num sentido que remonta à tradição de moralistas franceses como La Rochefoucauld, além da influência que teve na elaboração da noção de um psiquismo inconsciente a presença de Schopenhauer e Dostoievski entre suas principais referências. A esta visão da psicologia individual, juntara-se igualmente sofisticada compreensão da humanidade em suas formas coletivas, nisto implicado um conceito próprio do que é a Cultura e a História. Ao invés de isolar todos os slogans forjados para escandalizar a idealistas e positivistas em grande parte das vezes, é na conexão com aqueles elementos mais consistentes encontrados em seu pensamento que qualquer aforismo ou simples fragmento de autoria de Nietzsche se torna interessante do ponto de vista filosófico, além do mais evidente valor estético que carrega.

Portanto, ao contrário da atitude devota de sua multidão de discípulos dentro e fora da universidade, tampouco subestimando seu valor, deve-se compreender a diferença não só em seu estilo, mas no gênero literário a que pertence sua obra. Apenas com perfeita clareza a esse respeito, torna-se possível apreciar suas teses próprias assim como as críticas que dirigia a outros filósofos. Superada a narrativa épica que descreve a história da filosofia como um combate entre “tipos psicológicos” impondo cada qual sua perspectiva a prevalecer na trama da civilização ocidental, revela-se a seriedade e relevância de suas melhores intuições.

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