Deus não é um conceito simples. Em razão das múltiplas possibilidades de uso do termo e simultaneamente seu significado estritamente religioso para o senso comum, em geral é impossível desenvolver debate sério a respeito do tema. Ao nível puramente filosófico, a Metafísica pode desenvolver a ideia de Deus em questões relativas à origem do Universo, à ordem e regularidade dos fenômenos, à estrutura inteligível da realidade. Ao nível teológico judaico-cristão, se acrescentam necessariamente questões como as da possibilidade e condição do estabelecimento de uma relação entre o ser humano e Deus, com as consequências que isto implica desde sua espiritualidade mais íntima e conduta privada até seu vínculo com a comunidade, concebida como Igreja ou povo eleito e Mundo, ou a ação divina na História. Além desses problemas mais universais, cada denominação religiosa determina uma ortodoxia com os dogmas que efetivamente defende na mensagem que dissemina. Evidentemente, no nível institucional das religiões, até os problemas metafísicos mais elevados são tratados com o dogmatismo que é próprio às crenças cuja natureza não permite crítica ou controvérsias.

Para uma discussão sociológica ou política, tais sutilezas não importam muito. A vantagem numérica dos crentes que formam rebanhos torna teólogos e filósofos uma minoria que pode ser quase ignorada, exceto para consideração de aspectos menores das manifestações históricas da religião. Daí a indiferença dos cientistas sociais pelas perguntas propriamente teológicas acerca de Deus, o qual só entra em cena como crença presente em culturas de contextos mais ou menos religiosos. Até aí, trata-se de procedimentos legítimos inerentes ao método científico. A dificuldade aparece quando o militante ateu influenciado por certa filosofia política materialista passa a reduzir toda e qualquer posição teológica à sua (suposta) função na (suposta) luta de classes que dá sentido à realidade social. Na prática, o desvio científico dos debates metafísicos se converte no pressuposto de que o marxista nem sequer precisa argumentar para garantir a convicção com que nega a existência de Deus.

Há também o ateísmo militante de tonalidade mais psicológica, aquele que concebe o ser humano como um bebê chorão e supremamente carente, cujos afetos e dificuldades objetivas da vida se resolvem com base na pura fantasia. Esta imagem caricata é tão desprovida de realidade que apenas casos de fragilidade mental extrema, até mesmo de psicopatologias ou deficiências, a confirmam empiricamente. Até aí, portanto, trata-se apenas de uma antropologia filosófica de quinta categoria. No entanto, por mais que algum crente prove sua maturidade e coragem diante de grandes tragédias, serão menosprezados como seres infantis por uma análise convicta acerca da inferioridade emocional e epistemológica da crença em Deus. Quanto ao elevadíssimo grau de abstração das especulações metafísicas, tratar-se-iam não mais que racionalizações que dotam de aparência sublime aquelas mesmas baixezas por trás da crença vulgar em Deus.

Muito conhecido também é o ateísmo que tem no cientificismo seu marketing. Claro, aí a questão também é sobretudo política, em que os cientistas já não reivindicam apenas autonomia para a comunidade científica, mas buscam promovê-la hierarquicamente como autoridade para a sociedade em geral. Naquilo que lhe cabe, deve-se confiar na técnica, desde que ela não seja universalizada por meios ditatoriais. Até aí, o problema pertenceria ao direito de adesão a tal tese avaliada segundo os interesses de cientistas ateus. Porém, este tipo de ideologia se expressa sistematicamente através de uma retórica que finge ignorar as mais nítidas fronteiras entre as ciências empíricas e a metafísica, como se algum avanço da Física ou da Biologia na modernidade tivesse o poder de derrubar uma tese que já não se aplica a explicações de fenômenos empíricos desde a medieval navalha de Ockham. Negada a natureza filosófica do problema, se impossibilita o debate sobre Deus pelos termos em que é formulado.

Ao contrário do que convenientemente imaginam os ateus, não há a oposição entre dogmatismo religioso, do lado da afirmação da existência de Deus, e a crítica livre, do lado que nega que exista. Antes, há o pressuposto de que apenas o nível mais popular das religiões é suficientemente ignorante e estúpido para ser “partidário” da tese metafísica de Deus, o que permite anular a totalidade das abordagens mais sofisticadas que o problema recebeu na história da humanidade. Daí, fácil será a performance de caluniar quem não é ateu, seja ao ideologizar ou psicologizar a convicção e o ceticismo, seja ao afirmar a superioridade epistemológica dos cientistas diante do senso comum, como se não houvesse também teólogos, filósofos e mesmo muitos cientistas, que estão abertamente contra o ateísmo.

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