Há traços da cultura brasileira que são encontrados nas discussões em geral, não apenas as que se referem à política. Muito além de um dogmatismo patológico quanto aos objetos dos debates, parece parte essencial a estigmatização do interlocutor, diga ele o que disser, é obrigado a se adequar a algum dos estereótipos que habitam a (estreita) imaginação militante. E a atitude militante é encontrada igualmente em toda circunstância que envolva a exposição de uma opinião sobre qualquer assunto e a fatal reação de alguém que ousa discordar, tenha a motivação e o argumento que tiver, deve ser hostilizado. Teses e argumentos sempre trazem consigo necessário vínculo a uma caricatura a que estão profundamente associados no imaginário dos estudantes universitários.

São associações óbvias, simplistas e caricatas, portanto falsas. Não reivindicar a desmilitarização da polícia, logo, militarista. Não é a favor de cota racial, logo, racista. Não é entusiasta da agressividade gratuita e da ênfase no obsceno em protestos feministas, logo, machista e misógino. Não é favorável ao aborto, logo, é coroinha de alguma paróquia. Não é ateu, logo, é crente da Igreja do bispo Macedo. Não se ajoelha diante de Jean Wyllys, o mais célebre ex-BBB, para cultuá-lo, é necessariamente um homofóbico, sem margem para dúvidas. Não odeia nem xinga Olavo de Carvalho, logo, é um discípulo que o toma por guru, ou um olavette no jargão da internet. Não quer que Jair Bolsonaro seja banido da política, com certeza é fascista e “viúva” do Regime Militar, alguém que está louco para extinguir a democracia e levar o país ao mais sombrio autoritarismo. Se é conservador confesso, logo, é alguém que deseja o retorno da Idade Média.

Na verdade, não se trata exatamente, ou não apenas, de um mecanismo empregado na cognição, ou seja, da inadequação entre a imagem fabricada por sua própria ideologia ao interlocutor com que debate. Antes, esta imposição de figuras, que servem para ridicularizar e desmoralizar um mero adversário político, nos revela algo mais fundamental. O caso é que não são as ideias e opiniões da esquerda que atraem certos estereótipos sociais, mas é a adesão passional a determinadas identidades coletivas “pré-fabricadas” que trazem consigo um pacote de discursos padronizados, que produz a homogeneização do tipo-militante. Pelo clichê ideológico, um militante reconhece o amigo, por quaisquer outros discursos, ainda que não os compreenda, percebe seus inimigos na “luta” fantasiada: o ideal do que um militante sonha ser contra um fantasma cuja imagem ele não quer ter.

Mais ou menos como Baby chamava Dino de “não é a mamãe”, “fascista” não significa mais que “não é dos nossos” e ainda se atreve a ir abertamente contra a agenda marxista, senão nem precisaria ser hostilizado mas apenas ignorado. O autoritarismo do “fascista” está em não aceitar docilmente as diretrizes estabelecidas pela esquerda, ainda quando estas representem um suicídio econômico, atropelo de direitos básicos ou ameaça explícita à liberdade.

Já se a militância deseja elevar sua ideologia a doutrina oficial do nível fundamental ao superior da educação, a objeção que apele à cientificidade de uma teoria para que se incorpore ao currículo, será (des)classificada pelo rótulo “positivista”. Não importa que o positivismo como tal já tenha “saído de cena” há cerca de sessenta anos, basta que se reivindique avaliação rigorosa, relativa à coerência lógica e valor empírico de uma teoria, para que mereça ser insultado como se exibisse o sintoma de uma tara pela ciência. Aqui também, o termo positivismo significa uma oposição idealizada pelo próprio militante, a saber, alguém cruel e desumano sem flexibilidade nem complacência diante da “licença poética” das ideologias.

Quanto ao adjetivo “fundamentalista”, parece apenas acrescentar a forma explicitamente ofensiva para termos que já possuem significado abominável para a militância: “religioso” e “conservador”. Daí se torna uma “virtude militante” qualquer hostilidade para com um “exemplar” tão ameaçador quanto alguém que leva sua religião a sério e ainda tem a audácia de votar em representantes de seu interesse em eleições. Basta, portanto, não aceitar que o ateísmo possua o monopólio de tudo que se deve ter por racional e verdadeiro, para ser situado justamente como defensor do irracional e ilusório, em suma, um débil mental. Como fica claro, o sentimento de superioridade “epistemológica” (e até moral) do ateu só está garantido na medida em inventa um “outro” arcaico e supersticioso, quase animalesco, para que a simples condição humana, até como vivida pelos mais medíocres, pareça extraordinariamente elevada.

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