Intervenção de Gamaliel:

“Então levantou-se, no Sinédrio, certo fariseu chamado Gamaliel. Era um doutor da Lei, respeitado por todo o povo. Ele mandou retirar os homens por um instante e falou: ‘Varões de Israel, atentai bem no que ides fazer a estes homens. Antes destes nossos dias surgiu Teudas, que pretendia ser alguém, e ao qual aderiram cerca de quatrocentos homens. Mas foi morto, e todos os que lhe deram crédito se dissolveram e foram reduzidos a nada. Depois dele veio Judas, o galileu, na época do recenseamento, atraindo o povo atrás de si. Pereceu ele também, e todos os que lhe obedeciam foram dispersos. Agora, portanto, digo-vos, deixai de ocupar-vos com estes homens. Soltai-os. Pois, se o seu intento ou sua obra provém dos homens, destruir-se-á por si mesma; se vem de Deus, porém, não podereis destruí-los. Que não aconteça que vos encontreis movendo guerra a Deus.’ Concordaram, então, com ele”.

Atos 5: 34-39 (Bíblia de Jerusalém)

O judaísmo sempre se impôs como questão tanto histórica quanto teológica colocada para o cristianismo. Dois erros opostos costumam ser cometidos simultaneamente na posição cristã diante de sua origem espiritual. Por um lado, se imagina a própria pessoa de Jesus como fundador da nova religião de seus seguidores. Por outro, isto não teria sido um ato de rebeldia contra a Lei divina e o povo eleito, mas a plenitude da obra do Deus de Israel, absurdamente rejeitada pelos próprios judeus, aos quais priorizava como destinatários. A primeira imagem é historicamente incorreta, podendo ser desfeita pela mera leitura atenta do Novo Testamento, que sem dúvida será corroborada pela historiografia dedicada ao tema. A segunda ideia é elemento essencial da doutrina cristã, mas é desprovida de sentido segundo o ponto de vista judaico.

Jesus, de maneira consciente e deliberada, jamais chegou a romper com sua tradição e comunidade, pelo contrário, o empenho em sua missão foi o de ser fiel ao legado sagrado em que foi instruído desde a infância. Dito de maneira mais clara, e talvez incômoda para alguns, Jesus mesmo nada teve de propriamente cristão, nem na fé nem na prática. Isto não é uma opinião, mas o óbvio: o período narrado nos Evangelhos é anterior à formação do cristianismo como tal, com uma identidade própria discernível e não mais como pura seita judaica. Outro dado que o confirma é que a totalidade do sistema doutrinário cristão depende da Cruz como evento já ocorrido. O domingo seguinte inauguraria a possibilidade do cristianismo ser pensável, mas muitos anos ainda se passaram para que tomasse forma específica determinada.

Há muitas controvérsias em torno da pergunta sobre a vertente a que Jesus teria pertencido entre as divisões internas do judaísmo da época. Mas não há dúvida quanto ao nível de seus estudos das escrituras sagradas, com uma formação que o permitia pregar em sinagogas e reunir um grupo de discípulos aos quais transmitir seus ensinamentos. Além disso, a prática de fariseus interrogarem a respeito de como se deve interpretar certas passagens de textos e mandamentos, lida nos Evangelhos pelos cristãos como se fosse provocação maliciosa, é um dos mais autênticos costumes no diálogo entre rabinos e cultivado até hoje, como se vê no Talmud e outros clássicos da literatura rabínica. Outra marca da mensagem de Jesus era citar versículos em respostas e momentos fundamentais: Levítico 19:18 para o mandamento do amor ao próximo, Salmo 22:2 quando crucificado.

O fator histórico remete diretamente à pessoa de Jesus e nos leva a repetir o que todos sabem, ou seja, que Cristo é judeu. Já o elemento teológico a determinar a ruptura definitiva entre os dois grupos é praticamente ignorado pelos cristãos. Desde os autores que narram a trajetória de Jesus, se estabelece uma ponte com os profetas para conferir-lhe o título de Messias, para então saltar-se até uma mensagem inédita exposta apenas na pregação dos cristãos primitivos e nas epístolas do Novo Testamento. Porém, em parte alguma profetas associaram ao Messias a natureza do próprio Deus encarnado, uma impossibilidade de acordo com a concepção judaica de Deus. Além disso, nem sequer a necessidade de salvação para a humanidade tem sentido para a perspectiva do judaísmo, pois não possui o dogma do pecado original. Apesar do Gênesis ser parte da Torah, foi apenas o “link” Adão-Cristo que trouxe à luz a tese do pecado original, mais tarde enfatizada por Santo Agostinho mas de autoria de São Paulo, cujo ponto de vista parece muito mais herético aos judeus que o de Pelágio, derrotado na história dos dogmas da Igreja, para quem a condição pecadora não causava a perda da faculdade do livre-arbítrio.

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