O que se nomeia cultura envolve complexidade muito superior ao que se imagina no uso corrente do termo. Pode-se dizer até que guarda necessariamente grande margem de mistério, no sentido de que nunca pode ser plenamente explicada em sua dinâmica e ordem com que se forma e vigora concretamente. Apesar disso, podemos estabelecer minimamente como este conceito deve ser entendido, sem qualquer apelo a mistificações, obscuridade ou noções vagas.

Uma totalidade espiritual como pretende ser a cultura é a conexão entre o que é comum e o que separa indivíduos numa comunidade, assim como entre grupos de diversas naturezas na sociedade mais abrangente. Todo este universo é ao mesmo tempo mental e material, pois abarca ideias, princípios, crenças e valores, tomados como realidade necessária em que se vinculam a linguagem e a experiência em determinado contexto sócio-histórico. O potencial de interação através da comunicação depende do terreno já cultivado, mas sua ambição é também modifica-lo para todo tipo de finalidade. O grau da incomunicabilidade está sempre implícito no conjunto da comunicação efetivada. As referências objetivas e vocabulário compartilhados consistem na superfície aparente de uma multiplicidade de perspectivas, inconciliáveis em casos de antagonismo.

Aquela perspectiva que se define por compreender as demais perspectivas, ou ao menos compreender a realidade transcendente que é comum e subjaz a todas elas, é a do conhecimento. Ainda que sem abarcar os detalhes das perspectivas possíveis que se formam em cada contexto, trata-se de determinar as formas de entendimento dominante que serve de fonte do “senso comum” de uma categoria profissional, ambiente religioso ou militantes de um partido, etc. Já no interior de tais grupos específicos, se encontra a mescla entre comunicação eficaz e desencontro, sobretudo se considerada a diferença hierárquica entre líderes e subalternos. Neles se encontram convicções inabaláveis apoiadas em crenças e valores que estruturam a percepção dos acontecimentos, assim como dispõem ao tipo de vida prática que os caracteriza. Aderir a uma coletividade assim configurada pressupõe aceitar que está proibido, como atitude inconveniente e desprovida de bom senso, que se submeta seus dogmas ao exame rigoroso e questionamento radical.

A um sacerdote, líder político, comandante militar, importa muito a trama objetiva de que participam intencionalmente, assim como as conquistas aí alcançadas, ou fracassos. Mas igualmente lhes interessa conhecer a subjetividade daqueles com que interage para direcionar-lhes a ação. Também possuem auto-consciência da doutrina, ideologia ou código de ética que assumem e como comunicar eficazmente tal posição aos vários setores sócio-culturais que sua influência alcança.

A diferença epistemológica efetiva entre “intelectuais orgânicos” e o sujeito do conhecimento não está num ideal de desinteresse, indiferença ou neutralidade. Trata-se de haver rejeitado conscientemente todo este arranjo comunitário e espiritual rigidamente “engajado”, por castrar o impulso de buscar o mais fundamental. Não um conhecimento movido pelo interesse prático de aperfeiçoar o manejo dos subordinados para que uma liderança tenha êxito, mas pela intuição de que a retórica e os ideais explicitamente defendidos pelos adeptos de um movimento é o limite do que lhe é permitido pensar. A forma oficial de cada Ideologia expulsa a possibilidade de compreensão de pressupostos e motivações que façam duvidar da validade, e até da autenticidade, do modo de vida dependente do sentido das noções, teóricas e práticas, que formam seu horizonte. O que se busca com a pesquisa e o estudo não é desmoralizar, tampouco corroborar alguma perspectiva cultural disponível que toma por objeto de estudo. O interesse próprio do pesquisador, ao contrário, é superar limites corporativistas estabelecidos por qualquer interesse alheio, ou muitas vezes hostil, ao ideal de conhecer a realidade de que se ocupa.

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