A comunidade cujo vínculo está na atividade militante em torno de um mesmo partido ou movimento ideológico, é um protótipo do que viria a ser um rebanho ideal sob o poder de um ditador. O instinto de defesa do bando e a obediência canina a seus comandantes, são a única racionalidade que os determina. Seja em disputas de natureza prática, ou nos debates mais ou menos teóricos, o único esforço intelectual exigido é o de reconhecer quem são seus amigos ou inimigos. Enquanto todo o restante da sociedade imagina haver outras questões e critérios em jogo na política, para o militante tudo se reduz à rivalidade diante de outra facção que quer destruir. Por isso, tornou-se lugar-comum a analogia com torcidas de futebol para tratar de polarização entre grupos ativistas, embora trate-se de componente primitivo universal em nossas espécie.

O vocabulário empregado não é um conjunto de conceitos que se refiram a coisas reais. Na origem teórica daquela terminologia, trata-se de uso rigoroso das mesmas categorias, com a precisão exigida, além da consciência da necessária coerência entre todas as noções empregadas no interior de seu sistema. Já no discurso militante, o jargão ideológico funciona como sua “carteira de identidade”. Não importa se noções como justiça social, igualdade, liberdade, alta cultura, ou qualquer outro lugar-comum das diversas vertentes políticas, são consistentes e adequadas ou mera “flatulência vocal”. Através desse tipo de termos, um conteúdo midiático, intelectual, religioso, ou o comando mais direto de líderes para mobilizar os seus, podem ser imediatamente reconhecidos pela militância, que assim sabe quais personagens devem ser incondicionalmente apoiados e defendidos, assim como a qual “coletivo” deve se juntar.

Os fatos, coitados, se desmancham no ar. Ao militante não importa que o impeachment de Dilma tenha sido um processo constitucional e democrático ou não, ele deve tomar parte no mesmo mantra, gritando golpe e golpistas à esmagadora maioria de cidadãos, que se mobilizara para reivindicar  o fim do governo do Partido dos Trabalhadores. Se no meio desta parcela de nossa população, há enorme quantidade de trabalhadores, pobres, mulheres, negros, gays, e até mesmo militantes de esquerda frustrados com os mandatos do PT, isto pode ser absolutamente ignorado. Coloca-se a todos dentro do rótulo “coxinha”, que resume a forma mais extensa “elite branca fascista patriarcal…”.  Ninguém se preocupa em estudar Direito e examinar o conteúdo produzido ao longo das investigações, já se “sabe” de antemão que Lula é inocente e o juiz Moro deve ser impiedosamente atacado, com acusações permanentes de que persegue o ex-presidente por motivação política e serve a interesses inconfessáveis.

Argumentos são rebaixados a pretexto para impor seu ponto de vista e criminalizar qualquer possível posicionamento contrário. Quem quer a redução da idade penal quer promover um massacre da juventude negra e pobre, sendo única causa da criminalidade a nossa desigualdade. Não sentem falta de considerar que apenas uma pequeníssima porção da população mais pobre é criminosa, e que a grande maioria das vítimas da violência criminosa são os próprios “oprimidos”, camada mais desesperada por soluções urgentes para a segurança pública, já que a privada garante a vida e propriedades das “elites opressoras” que a podem pagar. Se alguém está contra a legalização do aborto, é um machista misógino querendo oprimir as mulheres, ainda que a grande maioria da população feminina rejeita a proposta e forme grupos ativistas anti-aborto.

Para evitar outros inúmeros casos que servem de exemplo, o que já foi apresentado permite concluir que esta “lógica militante”, que tudo reduz ao mero jogo da disputa pelo poder entre lados antagônicos em permanente guerra, é o que produz estranhamento e incompreensão no restante da sociedade. Tudo que parece auto-evidente para os demais é tragado e subvertido pelo célebre “nós contra eles”. Enquanto normalmente se pressupõe que haja interesse real pelos temas debatidos publicamente entre os grupos que nisso se engajam, ou que propostas defendidas trazem sempre boas intenções e a finalidade de beneficiar grupos existentes, ou que tais grupos sociais sejam efetivamente representados por partidos e movimentos que alegam defende-los, e que haja preocupação prudente com os futuros resultados de discurso e ações, toda esta perspectiva “racionalista” de senso comum impossibilita que se compreenda adequadamente o padrão dos ativismos da moda, nem que se assuma a postura estratégica capaz de lidar com o fenômeno sem dele tornar-se refém.

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