Acerca da proposta da demitologização, um mesmo equívoco é comum tanto a entusiastas da teologia do alemão Rudolf Bultmann quanto a seus opositores. Trata-se de atribuir ao suposto ceticismo do autor o poder de corrosão da ortodoxia tradicional das igrejas protestantes. Como se os dogmas de origem bíblica estivessem fora de perigo na modernidade, blindados e seguros diante de todo ataque. Caberia à apreciação e decisão subjetiva de um teólogo, aquele estímulo gerador do abalo na estrutura doutrinária. Assim, muitos ortodoxos acreditam poder combater o problema denunciado por Bultmann, travando combate com a teologia de Bultmann. Já os protestantes marxistas e pós-modernos tomam tal autor como o antecedente “canônico” a legitimar o ateísmo a que aderem fatalmente.

A maior dificuldade para compreensão da problemática de que ele se ocupou não é de natureza teológica, mas se deve ao nível pueril da perspectiva antropológica e hermenêutica que orienta o debate. Não se trata, porém, de julgar se a atitude do método histórico-crítico é justa para com o conteúdo do texto bíblico nem se o teólogo exagerou no valor que pessoalmente reconhecia à ciência. No fundo, ainda que a ciência não tivesse tamanho peso na visão de mundo de nossos contemporâneos, permaneceria a questão da incompatibilidade entre noções mitológicas do Novo Testamento e a compreensão moderna. Para além de opiniões em controvérsia, é preciso se perguntar se a configuração do conjunto de categorias que orientam nosso entendimento, em razão da historicidade que marca as manifestações culturais do presente, é algo necessário e inevitável. Se indivíduos e grupos não são autônomos para forjar livremente para si uma concepção da realidade arbitrária, que traz embutidas as crenças tidas como convenientes ou obrigatórias, deve-se admitir que “o pensamento moderno tem como consequência a crítica à concepção neotestamentária do universo”.

Há também um aspecto psicológico do problema, igualmente central. Ou o crente carrega vivo consigo todo o vocabulário bíblico, por onde quer que vá e sem intervalos, ou produzirá fragmentações internas profundas, tornando a experiência religiosa um compartimento exótico e anacrônico, com credo e rituais reproduzidos superficial e mecanicamente, sem qualquer impacto em tudo o mais que vive fora de sua igreja. Não são simplesmente crenças religiosas mantidas paralelamente a convicções inabaláveis que temos atualmente sobre o funcionamento dos fenômenos naturais e da matéria. O alcance da discussão advém do fato de que a lógica que organiza todos os nossos conceitos fundamentais anula o sentido da narrativa pressuposta pela mensagem de salvação e juízo final, conforme elaborada pelos autores bíblicos. Não são fatos particulares críveis ou não, muito menos um debate sobre o status ontológico dos milagres, mas o horizonte completo das questões em torno das quais girava o cristianismo primitivo que se mostra em ruínas.

Tal qual Nietzsche, que ao anunciar a “morte de Deus” não pretendia ser ele o agente responsável pelo “decreto do óbito divino”, a crítica teológica tem impulso num diagnóstico do mundo atual, não nas preferências e caprichos do teólogo. Ao contrário de Nietzche, para quem todo Absoluto morre sob o nome de Deus, Bultmann foi até modesto em sua constatação, como se não fizera mais que referir-se ao óbvio. O pecado original trazendo a condenação à morte, a eleição de um povo onde surgirá um messias prometido, a encarnação do próprio Deus, a crucificação e ressurreição de Jesus, o Pentecostes e o futuro reino de Deus após o Juízo Final, ainda que fossem elementos verdadeiros tomados separadamente, reunidos em composição unitária aparecem como um aglomerado aleatório de pitorescas especulações sobre passado e futuro incognoscíveis.

Infelizmente, o “suicídio teológico” da demitologização se deu com a eleição da filosofia de Heidegger como a base “existencialista” desde a qual se interpretariam os significados profundos sob os símbolos da mitologia que norteava os primeiros cristãos. Ao invés de nos elevarmos a uma compreensão superior da tradição, com Heidegger, retrocedemos e ficamos aquém do Novo Testamento. De modo algum, porém, tal erro retira o valor e a relevância do empreendimento total de Bultmann. A igreja segue desviada de qualquer finalidade que se perceba como sagrada, sem saber o que deve, ou sequer pode, ser neste momento da história. Tampouco é capaz de encontrar ainda algum sentido na mensagem conforme herdada de sua origem bíblica.

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