Já nos habituamos ao clichê retórico que, após aproximar o conceito de visão de mundo de outros semelhantes, como ideologia ou narrativa, até que se confundam, reduz toda e qualquer perspectiva ao proselitismo que lhe confere sentido e motiva. Isso não quer dizer (apenas) que recrutar adeptos para sua causa seja a tara que move a humanidade, mas que se considera inimaginável qualquer outro estímulo ao uso da inteligência e da linguagem que a comunica, além da obstinação panfletária elevada a impulso vital. Mas há muitas outras possibilidades além desta já tornada um dogma do senso comum juvenil ao qual pertencem muitos professores, jornalistas, juízes, militantes, etc, que são jovens desde os anos 60 pois jamais deixarão de ser.
No caso da ideologia, ao contrário do que se acredita, o valor das ideias mesmas é nulo, de fato nem importam. Inicialmente, a ideologia foi sobretudo abordada como item da dominação burguesa, ideias dominantes são convenientes para a classe dominante e legitimam sua dominação. Portanto, aí não haveria mais que falsa consciência, alienação e ideias vazias de significado e realidade, cuja finalidade é conservar um poder, não atingir alguma verdade. Posteriormente, o suposto funcionamento da ideologia na sociedade burguesa serviu de receita para a própria ação dos grupos marxistas, pela ênfase em seu efeito material, por unir e mobilizar uma militância, a qual já foi formada pela doutrinação ideológica para cumprir tal tarefa.
Tratando-se de conceito com lógica própria, não seria aconselhável a tentativa de alterar sua natureza, contaminando uma doutrina deste tipo com compromissos com fatos ou submissão a critérios lógicos, pois são outros parâmetros a nortear a “voz coletiva” afinal. Para a vítima de uma ideologia, só há duas dimensões percebidas, a vertical que lhe informa sua autoridade, em interação com a horizontal, onde tem o apoio de outros idiotas a corroborar a convicção de que tal condição servil não consiste em nada indigno ou vergonhoso, mas prova de superioridade. Daí ser indispensável garantir que as glórias daqueles ícones a irradiar marxismo nos jornais, canais de TV, universidades, escolas, igrejas e ativismos de todo tipo, jamais sejam colocadas debaixo de dúvida. A única metáfora capaz de expressar o significado de formadores de opinião para o marxista não é a de um conselho de sábios, mas a do panteão divino. A idolatria patológica é o que garante não só que o ídolo seja inabalável, mas a coesão da massa que deve ser conduzida. Sem a companhia entusiástica de outros idiotas, não haveria milagre que pudesse produzir carisma, com a resultante extinção da própria figura de um líder.
O simples entendimento de que nossas discussões públicas seguem esta dinâmica é suficiente para se encontrar fora do “território” cultural em que o marxismo vigora como lei. Por definição, a ideologia não pode ser consciente de si, pois enquanto ideologia, não se coloca como problema os pressupostos que a orientam, nem admite dúvida sobre a validade daquilo que afirma, já que passando ao “para si”, cometeria suicídio. Nesse sentido, basta não estar de acordo com tamanho dogmatismo ou não estar disposto a tornar-se uno com a massa, para rejeitar doutrinas coletivistas, não havendo nenhuma necessidade de adesão a alguma outra “ilusão fundamental” que estiver circulando no mercado de ideias. Para muitos, porém, parece tão difícil acreditar na possibilidade de que um raciocínio possa se executar sem que se tenha inspirado em disputa por poder. O marxismo impõe aos demais o sentido de sua agenda, se algum grupo ousa manifestar-se politicamente mas não em seu apoio, deve ser gente com tanta ambição pelo poder quanto o próprio exército vermelho espalhado mundo afora, sobretudo em ambiente universitário.
A diversidade de interpretações sobre um acontecimento, ou remeter a diferentes fundamentos as mesmas aparências, não são formas análogas à contradição entre o discurso de alguém que é movido por ideologia e outro que seja capaz de apreendê-la enquanto tal, isto é, não como saber positivo sobre a sociedade, mas meramente como força material da práxis revolucionária, à revelia do entendimento de seus militantes. Para eles, não há mediação ideológica entre sua consciência e a realidade, antes porém, a realidade é totalmente suprimida para dar lugar à ideologia como realidade, manejada como verdade fixa de tudo que venha a ocorrer, quer dizer, sem precisar jamais se deslocar de seu status puramente abstrato e utópico para correr riscos empíricos. Como se sabe, uma abstração pura tomada em si mesma soa verdadeira, exceto quando se trata de absurdo irracional. Logo, é o modo pelo qual se forma e se perpetua, que permite discernir uma visão de mundo que se comporta de modo ideológico de outra que não apresenta semelhantes traços, e não a suposta verdade objetiva ou a falsidade de seus distintos conteúdos.