O conceito de Ideologia na teoria marxista teve um destino, após reformular-se muitas vezes, que se afasta de sua origem na obra de Karl Marx. Além de modificações conscientes desta categoria, operadas por teóricos marxistas posteriores, o trabalho de autores nas primeiras décadas do século XX ignorava o conteúdo de uma obra da maior importância, A Ideologia Alemã (publicada apenas em 1921). Nela, é exposta a doutrina filosófica que ficou conhecida como Materialismo Histórico, além de definir a Ideologia como uma noção fundamental em sua teoria. Ainda que a perspectiva do próprio Marx tenha se transformado ao longo de publicações mais maduras, voltar a esta formulação inicial permite compreender elementos decisivos para as ideias e a prática dos marxistas até hoje.

De que modo uma determinada estrutura social, composta por classes antagônicas em condições desiguais, poderia ser mantida com certa estabilidade? O proletariado adere a crenças, valores e princípios que beneficiam exclusivamente à burguesia, mas os defende como seu próprio interesse, tal seria o “truque” desta ideologia. Não se imagina uma multiplicidade de teses políticas em disputa por hegemonia, há um ajuste estrito entre os componentes da sociedade: a economia é capitalista, a burguesia é classe dominante, a hegemonia ideológica é necessariamente burguesa.  Ou seja, as ideias dominantes se identificam com o ponto de vista da classe dominante.

Diante deste determinismo, conclui-se que o debate de ideias é inútil para reconfigurar estruturalmente uma sociedade, havendo suficiente radicalidade unicamente no ato violento da revolução. A dedicação ingênua ao confronto entre visões de mundo, uma tradicional e outra “crítica”, é o que Marx reprova na pseudo-combatividade dos jovens hegelianos. A luta deve ser contra a realidade material, não contra as formas de falsa consciência que dela resultam. Por isso, não lhe ocorre a disseminação de uma doutrina política como estratégia revolucionária. Se a vida do trabalhador é constituída pelas relações de produção e pelo modo de produção próprios do capitalismo, sua consciência é um epifenômeno onde não há liberdade para rejeitar o “espírito burguês” que a formou.

Em parte alguma parece haver a intenção de simplesmente inverter o jogo ideológico, em que o proletário devesse lutar por hegemonia política e cultural sem uma ruptura clara com a sociedade burguesa. Tendo em conta a tese defendida em A ideologia alemã, tal hipótese seria absurda. Pois, curiosamente, esta diretriz estratégica ganhou força ainda na primeira metade do século XX, tornando-se a marca específica de tudo que se apresenta como marxismo nas últimas décadas.

A ênfase é deslocada para o potencial da interação entre os seres humanos, que podem influenciar a ação uns dos outros por meio da comunicação de ideias. Todo o “aparato espiritual” que formara a consciência de um povo, como a religião, a arte, a filosofia, etc, poderia ser instrumentalizado pelos marxistas, com sua reorientação ideológica para que promova as opiniões que lhes convém a fim de modificar o senso comum de uma sociedade. Esta concepção pensa a ideologia como arma política fundamental, mas assim a categoria perde a função de explicar o vínculo entre ideias (hegemônicas) e estrutura social, dentro de uma lógica material em que a base econômica determina a cultura, a política e as leis.

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