Introdução:

Ao contrário do que geralmente se imagina, não há mais lugar para uma atitude cética na filosofia desde que certas tendências se popularizaram a partir da segunda metade do século XIX. Já não se duvida da existência do mundo externo ou da objetividade de noções fundamentais como a de causalidade, pois vigora a complacência com ideias vagas e confusas, como a de “clima cultural”, em que a preocupação de alguns departamentos de filosofia nas universidades se torna a grande questão da humanidade, ou seja, o status da metafísica entre os modernos e pretensos pós-modernos como questão central da qual tudo que se passa em nossas vidas se deriva. Ademais, gigantes da filosofia como Descartes, Kant ou Hegel, são avaliados não mais por suas contribuições originais, impacto revolucionário na história ou extraordinária capacidade de erguer catedrais na forma lógica de um sistema filosófico. Ultimamente, passaram a ser julgados sobretudo pelos supostos efeitos nocivos de suas formas de pensar pautaram a história do Ocidente.

Obviamente, jamais passou pela cabeça de um filósofo, fosse antigo, medieval ou moderno, que a ocupação com a metafísica deveria levar em conta, e até estabelecer como sua principal finalidade, o dever de produzir um efeito ideal sobre a história humana. Se aceita a operação que subverte debates propriamente filosóficos, quer metafísicos, lógicos, epistemológicos ou éticos, que são substituídos por uma arbitrária politização da “filosofia primeira”, cujos efeitos históricos são meramente adivinhados em meio à complexidade monumental dos processos que formam, transformam e levam civilizações à extinção. De que “Deus morreu” há consenso, tendo a fórmula se tornado um lugar-comum, mas quando o objeto é a história, a cultura, a sociedade e a política, não importa a crítica kantiana e a finitude do entendimento, pois o Infinito parece estar aí, tal qual objeto que se mostra à simples intuição empírica. Para Nietzsche, o intelecto é o fundamento falsificador sobre o qual são construídas todas as nossas “verdades”, em razão de postular a incapacidade de nossa percepção e linguagem para apreender o real. Tal ceticismo aparente é sustentado pela construção que imagina a consciência como receptáculo das deliberações finais de assembleias entre vários instintos em guerra, cujas contradições e alterações em sua configuração hierárquica anima nossa vida inconsciente. Seria menos engenhoso logicamente deduzir a existência de Deus através de alguma das vias mais tradicionais, como a da “prova ontológica”, do que elaborar uma “teoria da conspiração” como esta que emprega analogias extraídas da política para explicar a dinâmica psíquica humana.

Também se deve “suspeitar”, para usar um termo caro a tais correntes, de uma crítica ao idealismo alemão, condenado como metafísico e funcionário de certa ideologia, mas pretender explicar a sociedade e a história empregando uma analogia que é a concepção da coletividade como organismo cujo corpo é a infra-estrutura econômica e o espírito, sua superestrutura cultural em sentido amplo. Ainda mais absurdo seria crer que formas lógicas que resultam da tendência a sínteses totalizantes e a operação de princípios essenciais de nossa atividade mental, como a identidade e a unidade, poderiam conduzir indivíduos e grupos inteiros a tragédias militares, políticas e culturais. Como se sabe, ou se deveria saber, o “Descartes histórico” não foi o “autor da metafísica da modernidade”, nem o fundador de um “projeto”, pelo menos não no sentido que é tomado pelo preconceito dos inimigos da sociedade industrial, da técnica, da ciência moderna e da cultura de massas. Ainda que suas ambições fossem monumentais, ele não poderia prever o estado de coisas em nossa civilização nos séculos posteriores nem julgá-la desde um ponto futuro. Sem um advogado para representá-lo, não pode defender-se da acusação de paternidade, sendo possível imaginar que nem sequer se identificasse suficientemente com o curso dos acontecimentos ou reconhecesse sua influência, tanto na ciência como na história, mas fosse capaz de apresentar uma apologia do cartesianismo e seus benefícios ao longo dos séculos. Além disso, se pode levantar a hipótese da presença de influências anti-cartesianas igualmente decisivas no curso de formação da “modernidade”.

Normalmente justificadas por uma concepção hermenêutica da tarefa filosófica, tais imposturas jamais determinarão os rumos do pensamento, não sendo mais que dogmas que vigoram apenas em círculos acadêmicos estreitos e fechados, onde se desconhece o mundo de que tanto se fala. Aristóteles, felizmente, não examinou as teses dos pré-socráticos tendo em vista presumidos efeitos sobre a cultura grega de seu tempo, apenas buscava nas “opiniões dos sábios” seus êxitos, alguns destes apenas implícitos, e os elementos a serem ainda corrigidos e aperfeiçoados. Com efeito, jamais houve um grande filósofo satisfeito ou confortável na cultura de seu contexto particular, mas antes de Nietzsche e Marx, não havia ocorrido para alguém tamanha convicção de que a filosofia, principalmente em suas mais elevadas manifestações, pudesse ser responsável pelos males do mundo, antes parecendo mais evidente a todos que era sua ausência, talvez por incapacidade e desinteresse da maioria para ocupar-se dela, que produzia uma enorme quantidade de confusões entre os homens em sociedade.

A base filosófica para todas as hipóteses que apontam nesta mesma direção é o pressuposto encontrado em Hegel, de que não há separação ontológica entre formas de pensar e formas de vida em um mesmo contexto social, entre a metafísica de um povo e sua eticidade. Assim sendo, os processos históricos e o senso comum não são âmbitos independentes da filosofia, mas o campo onde a metafísica se realiza. Ainda que a obra hegeliana não mereça ser acusada de motivações tão mesquinhas, todas estas rotas equivocadas que o tomaram como ponto de partida podem ser explicadas pelo ideal de “manejar” os mecanismos que produzem os acontecimentos e movimentos decisivos no curso da história. O filósofo já não dialoga “apenas” com outros filósofos, vivos ou não, mas tem a humanidade em seu horizonte, cuja configuração deseja influenciar, resignando-se porém quando não alcança esta meta vivo, mantida a esperança de causar impacto em gerações futuras. Tamanha megalomania e vaidade trouxeram uma série de falsos problemas ao debate filosófico, alienando o pensamento e o colocando a serviço de interesses alheios. O efeito perverso de tal estado de coisas é o obscurantismo e mistificações quanto aos problemas filosóficos reais que a modernidade trouxe, tanto em suas aporias e ataques à metafísica quanto no desafio de formular com maior precisão em que consiste esta dialética entre filosofia e história ou entre intelectual e sociedade.

Metafísica, Ontologia e Senso Comum:

Jamais se poderia esperar que uma dada corrente filosófica ou mesmo que breves períodos de uma longa história pudessem dar a “palavra final” relativamente a qualquer dos problemas tradicionais, ou seja, aqueles de que os gregos, ao menos a partir de Platão, já se ocupavam explicitamente. Contribuições definitivas são aquelas que logram revelar aspectos antes implícitos, desfazer confusões, reformular em termos inéditos aqueles debates ocorridos através da tradição, mas jamais alguém poderia decretar de maneira irreversível os limites para o filosofar em vista de sua função na sociedade, quer por motivo epistemológico, político ou de “crítica cultural”. Hábito tão popular quanto irrefletido tem sido insinuar que interesses e preocupações de ordem prática ou dramas existenciais tenham produzido o modelo específico de racionalidade ocidental.

Em sentido oposto à arbitrariedade mencionada, se poderia afirmar que a vida contemplativa e o cultivo desinteressado do estudo e da meditação, assim como a atenção do espírito voltada para si mesmo, foram o fator central no processo de liberar a consciência do pensador das necessidades e conflitos mais urgentes do cotidiano. Enclausurar-se numa perspectiva dedicada exclusivamente à produção de solução dos problemas humanos, dos quais jamais poderia se desligar ou nem mesmo se distanciar, cercada pelo compromisso com tudo que há de banal, frívolo, superficial, a serviço da vaidade e da perversidade típicas de nossa espécie, é esvaziar este “ofício” do que lhe é mais próprio, a saber, do entusiasmo, perplexidade e fascínio perante a sabedoria que anima a contemplação, tornando-a paixão suprema, para a qual todo desejo está direcionado, não havendo qualquer necessidade de repressão para impedir que se busque satisfação em outra parte, pois esta carência comum já não vigora mais no que encontra na ocupação intelectual sua vocação. É isto que move cada indivíduo que filosofa e tem sustentado a presença da tradição como referência por tantos séculos, ainda quando apenas latente mas conservando o potencial de ser resgatada a todo momento. Que o resultado da devoção à sabedoria seja útil e enriqueça a humanidade em geral, a história o demonstra, mas tal efeito não se apresenta como finalidade a guiar a busca.

Parece não ocorrer a alguns célebres autores contemporâneos a questão da autenticidade da performance de um pensador quando lhe é castrado o impulso de problematizar todas as categorias exaustivamente até que se possam justificar seus pressupostos últimos, ou seja, ao recalcar a tendência à auto-fundamentação de sua ontologia como plena realização da tarefa que assumiu. A “navalha de Ockham” vigora na produção científica por se tratar de um padrão comunitário para garantia da maior eficácia no funcionamento institucional, mas este princípio não tem meios de se impor à fonte do pensamento, onde impera a inquietude que não se submete a nenhuma lei externa. Qualquer esforço para conduzir a tarefa filosófica por um caminho previamente traçado, que pudesse transmitir-se de uma geração a outra, como de um mestre aos discípulos, ditando-lhes suas prioridades e ideais a buscar, só poderia obviamente debilitá-la.

Que o senso comum carregue implicitamente toda uma ontologia não permite que se anule a diferença radical entre uma tal compreensão pré-teórica e o pensamento racional já trazido à luz, conhecido posteriormente através da obra dos filósofos. Não se trata da diferença simples entre implícito e explícito, confuso e ordenado, mito e ciência. Que a forma teórica se tenha desenvolvido como modo próprio de exposição das ideias filosóficas não se deve a qualquer preconceito elitista de antigos, medievais ou cientificistas modernos, mas ao fato da vitalidade do intelecto estar em seu movimento logicamente necessário, que ordena, amplia, complexifica, confere maior precisão, coerência, coesão, no limite, no sistema é consumado. Já no senso comum, o conjunto de representações e opiniões ocultam as conexões lógicas fundamentais que conferem unidade e coerência interna a qualquer ponto de vista racional. Nesta situação, o pensamento ignora sua realidade própria e não se descobre sujeito, dotado de forma substancial e não mero epifenômeno que pudesse ser remetido a determinações externas ao intelecto mesmo: pensamento é realidade em si.

Conclusão:

No presente estágio de desenvolvimento das ciências de laboratório, não se deve imaginar que sobreviva qualquer dependência do trabalho de fundamentação filosófica fornecida por uma disciplina como a ontologia. Pode-se rejeitar qualquer caráter idealista em nome de uma concepção da ciência que enfatiza os aspectos materiais aos quais os elementos conceituais se ajustam, não restando a necessidade de justificar teorias por si mesmas. Neste tópico, não parece haver mais motivo para prolongar controvérsias tradicionais, cada vez mais obsoletas na medida em que a produção científica de conhecimento se diferencia e demonstra sua especificidade em relação a suas origens em que era ainda uma parte da filosofia.

Rebaixada a papel secundário na produção do conhecimento de utilidade prática reconhecida, o científico, que além de gozar de invejável prestígio na sociedade também se impõe com facilidade nos debates epistemológicos, a filosofia passou a buscar em si outros méritos pelos quais pudesse ser valorizada. Nessa tentativa, pareceu em alguns casos ter-se convertido em auto-ajuda ou ideologia, resultado que torna o cenário ainda mais dramático para o desafio de reconquista de sua legitimidade. Constatação inevitável é que até a modernidade, vida teórica, metafísica e ciência eram aspectos de uma só unidade, e o sentido que possuíam nesta configuração existencial era a razão para que existissem e fossem indispensáveis. Reinventar o significado, função e valor da filosofia num contexto em que a dedicação à contemplação é tomada como anacronismo extravagante e a vida prática absorve todo interesse e preocupação, talvez seja mais que um enorme desafio, mas trate-se, enfim, de ideal absurdo.

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