O famoso método histórico-crítico, que marca a abordagem liberal do texto bíblico, é acompanhado por uma tendência filosófica moderna muito mais profunda que se fortalece com certa leitura das consequências da Crítica da Razão Pura, de Kant. Negada a possibilidade de um conhecimento científico de Deus, tal qual a Física de Newton mostrava ser efetivo dentro de outro âmbito da realidade, a Teologia estaria desmoralizada e já não poderia se justificar como perspectiva acadêmica séria enquanto reduzida a “mera” atividade especulativa e, portanto, passatempo para desocupados. A debilidade retórica desta narrativa não impediu que ela impressionasse a muitos teólogos importantes, a começar pelo ícone Schleiermacher. A “revolução copernicana” (kantiana) produziu impacto não apenas no debate teológico, mas teve resultados visíveis até no nível mais amplo das igrejas no manejo de dogmas, doutrinas e status do texto bíblico. No entanto, além do fator histórico de natureza mais extra-religiosa e até anti-religiosa, há também elementos no interior da religião que determinam o curso deste processo.
O judaísmo parece sentir-se muito mais confortável diante de questões metafísicas desde que se possa tomar posição com base na Torah e na tradição de seus comentários. Não se trata de buscar justificativas em citações literais, mas de multiplicar as possibilidades interpretativas através de uma série de princípios exegéticos formalizados ao longo dos milênios. Assim, o pensamento religioso judaico se sente seguro geralmente para enfrentar os maiores mistérios, desde a origem do Universo e sua estrutura mais profunda, a Vida, a alma humana, até os segredos referentes ao próprio Deus. A literatura sagrada, marcada pela dinâmica contida no próprio idioma hebraico, torna-se fonte de orientação universal para a comunidade.
O catolicismo também cultivou forte senso para o sentido metafísico do conteúdo bíblico como de toda a teologia. Os símbolos são efetivamente “levados a sério” já que comunicam verdades inacessíveis à experiência ordinária, mas tratam de coisas reais que a esta forma de linguagem cabe revelar. Esta lógica abarca tanto o nível do credo quanto do ritual e do funcionamento regular da Igreja, unificados arquitetonicamente em uma “catedral” teológica já elaborada desde os escolásticos medievais. Apesar de tão invejável legado, os golpes modernos contra os fundamentos filosóficos do cristianismo conseguiram tumultuar consideravelmente o debate contemporâneo entre os teólogos católicos.
Já o protestantismo surge como ruptura com o catolicismo medieval, sendo uma das principais ocupações dos escolásticos, a partir de então, o combate às teologias que servem de base às igrejas reformadas. O anti-intelectualismo que reduz a teologia necessária ao que está exposto ao Novo Testamento interpretado da maneira mais literal que somos capazes se multiplica assustadoramente até nossos dias, gerando versões cada vez mais bizarras de fé. Este empobrecimento espiritual vendido como santidade a protestantes e evangélicos ao longo dos últimos séculos também despreza a filosofia discriminada por sua origem pagã, esquecendo que os conceitos metafísicos gregos são abundantes desde o princípio já na origem canônica de sua fé.
Desde esta perspectiva, o texto bíblico só pode conter referências simples e diretas a dogmas e elementos bem definidos da doutrina, sendo tudo o mais “informação” de tipo histórico, tenha ou não valor teológico. Não sendo, porém, redutível a termos estritamente ortodoxos, qualquer outra ousadia especulativa encontrada na bíblia é entendida como recurso puramente estético, adorno, um arsenal de hipérboles para expressar poeticamente elogios a Deus e entusiasmo apenas subjetivo, material refratário à reflexão filosófica que busque extrair daí consequências de maior alcance.