A atividade cotidiana no ensino universitário é a revisão de textos filosóficos e científicos, que deve resultar em uma capacidade de expor corretamente os conceitos dos autores e os argumentos que se confrontam nos debates de cada área ou disciplina. Para um exercício intelectual reduzido a tais limites, pode-se dizer que há uma “meia dúzia” de acadêmicos de grande excelência no Brasil, embora infelizmente este nível esteja muito longe de representar o padrão nas salas de aula pelo país afora. No entanto, para uma adequada análise do que se passa concretamente diante de nós, seja no plano da vida privada ou no mundo contemporâneo em geral, a experiência universitária se prova insuficiente ou mesmo uma deformação cognitiva que leva o analista a falsificar grosseiramente seu objeto, se equivocando num grau tal que nenhum “iletrado” atingiria ao opinar sobre o mesmo tema.
Contando com a ignorância da “massa” a respeito dos limites da competência de um intelectual público oriundo da universidade, surgiu uma “onda cultural” registrada em capa da revista Istoé expondo os três (supostos) gurus da juventude brasileira, todos com status de “doutor” e, por isso, autoridades inquestionáveis para a plateia (supostamente) inculta na quase totalidade. A doutrina e mensagem específicas que eles oferecem, reservo para comentários mais detalhados em novos textos dedicados apenas a esta finalidade. Aqui o foco será o método que manejam na performance encontrada em palestras para leigos e programas na TV. Tudo depende de produzir uma ilusão que garante tanto a credibilidade daqueles personagens como intelectuais, quanto a convicção de que o conteúdo que defendem traz o “selo” do que há de mais elevado na produção de nossos sábios através da História. Não é necessário duvidar da real erudição de um charlatão que se passa por pensador publicamente, a desonestidade reside em outro aspecto de seu ofício.
O truque mágico que lhes caracteriza é a seleção de fragmentos de conceitos, argumentos e citações literais, apresentados como amostra (mínima) mais do que suficiente para reconhecermos que a tese de alguém célebre e respeitado coincide com perfeita exatidão à opinião vagabunda que aquele professor se esforça para nos vender. Em alguns casos, ocorre mesmo uma retórica que busca deixar subentendido que há consenso em torno a determinada tese por parte de todo autor de grande porte, ou de qualquer sujeito razoável, enquanto o que há na Filosofia é a proliferação de controvérsias em todas as suas discussões, não havendo grande acordo em relação a nenhum de seus problemas fundamentais. Tendo sido o pensamento subvertido para tornar-se “imagem e semelhança” do “representante” público da tradição filosófica, tudo de mais genial que foi escrito até hoje parece caber no miserável pacote “politicamente correto” de crenças e valores que adolescentes já mostram dominar habilidosamente antes de pisar em uma universidade ou ter lido obra relevante até aquele momento da vida. Ser exposto a programas de televisão, cinema mainstream e revistas para adolescentes, permite formar-se com igual grau nesta “altíssima cultura” legitimada e corroborada pelas décadas de estudos dos mais prestigiados acadêmicos do país.
O que é positivamente um cardápio de receitas de sabor “new left” para doutrinar a sociedade, por outro lado, é a negatividade para destruir e ridicularizar todo aspecto do conservadorismo que marca a população alheia à cultura acadêmica. A manobra é feita isolando a referência teórica a que apelam, para ocultar tanto o que é discutível e até deficiente nela, como a complexidade interna ao sistema de ideias de um único autor. Uma frase é extrapolada para induzir conclusões unilaterais do máximo alcance. Fica a impressão de que nada teria preocupado mais a meditação filosófica que o combate agressivo a preconceitos e pressupostos que habitam o senso comum de um povo, enquanto até mesmo o tipo de relação que se estabelece entre a filosofia e o senso comum, ou a cultura em geral, consiste em um problema filosófico a dividir os autores.
Assim, a alegada fonte dos dogmas do tagarela público é arrancada do seu contexto controversial de origem, no qual disputam filósofos contra filósofos, cientistas contra cientistas, e vulgarizada como simples “crítica da ideologia popular vigente”, em que se impõe como Golias intimidando Davis desprovidos do jargão hermético manejado pela elite letrada e de seu repertório de referências, portanto impedida de flagrar tamanha falsificação. Onde todo este marketing consiga ser persuasivo, os inimigos políticos da intelectualidade acadêmica terminam identificados como a contradição de toda reflexão crítica enquanto tal, parecendo negar a mais simples racionalidade e o bom senso.